05/07/2010

chá de sábado

- "pronto, passou!", disse a mim mesmo ao acordar. rateei ao redor da cama à procura do celular. encontrei. fui olhar as horas e, ao invés de horas, bem à minha frente, dançava tremeluzente o pi minuciosa e completamente calculado. elhei em volta: era só o meu quarto - bastante bagunçado, confesso - escuro e turvo. uma conferência de vozes quase reconhecíveis zanzava pelo recinto.

* madrugada fria de sábado, primeira hora da manhã *

depois de ter zanzado por todos os cantos - subterrâneos ou não - do centro da cidade, acabei voltando, como quase sempre, àquela praça obscura de um negro-esverdeado que corre desesperado ao encontro do seu tom mais amarelo e derretido, de tanta desgraça e cachaça e fumaça. andei um pouco, vi pessoas e, ao atravessar a rua em direção ao pub, encontrei dois subterrâneos conhecidos que emanavam uma aura de subversão e prazer alucinógeno triste e solitário. fui de encontro a eles e logo que me aproximei me assustei com os olhares; ambos me olhavam com os quatro olhos mais inteiramente abertos que eu já tinha visto.

olhei-os com deboche e disse:

EU: (irônico) - aaarrrbaridade! que trago é esse que vocês andam tomando?
MADRUGA: (com a boca frouxa) - eu n..n..nem s..sei.
EU (espantado): - Caralho!
EURICO: (para mim) - deixa ele, ele não sabe nem onde tá. é florisbum. - e me mostra uma garrada de plástico com um líquido marrom chocolate dentro.
EU: - que porra é essa?
MADRUGA: - é.. um... chá.
EU: - tipo chá de cogumelos?
EURICO: - é, mais ou menos...
MADRUGA: - eu vou p..pra baia.
EURICO: (para Noitada) - quer que eu vá até lá contigo?
MADRUGA: - não. Eu t..tô bem. - e sai andando sem nem menção de despedida. não tonto, como um bêbado, mas alheio a qualquer coisa, até a ele mesmo. porém, o hábito o fez olhar para os dois lados antes de atravessar a rua. desapareceu.

EU: - que viagem!
EUCLIDES: - tu nem imagina...
EU: - e tu, tá de cara?
EUCLIDES: (rindo) - não, não.. só tô segurando melhor a onda.
EU: - como é?
EUCLIDES: - não é parecido com nada.
EU: - pútz!
EUCLIDES: - vamo lá pro meio da praça?
EU: - vamo.

e rumamos em direção à praça, passando por todos os tipos de subterrâneos e plebeus. Eurico, assim como Madruga, alheio a todo o resto, andando automaticamente, guiado por suas pernas acostumadas. achamos um canto escuro e vazio e nos sentamos. acendi um cigarro. olhei para ele e vi que lutava árduamente com seu bolso.

EU: - quer um cigarro?
EUCLIDES: - quero.. quero.

saquei um dos meus, acendi e entreguei a ele. ficamos fumando em silêncio, observando a fumaça dançar e se expandir e esvair pelo vento cortante da noite. de repente, do nada, ele se levanta e sai andando em direção ao pub.

EU: - onde tu tá indo, chê?
EUCLIDES: (com a garrafa ainda na mão) - vou lá pegar uma gelada.
EU: - vai levar isso aí junto?
EUCLIDES: - ah, é! toma aí, segura pra mim. - e me entrega a garrafa com aquele líquido misterioso e um copo descartável jogado dentro, sem cerimônia. sai andando.
EU: tá. mas volta! enquanto isso vou apertar um aqui pra nós.

fiquei ali observando ele se afastar aleatória lentamente... dichavei e apertei o baseado. Eurico demorava demais, então resolvi acender de uma vez. acendi e fiquei fumando lenta e apreciativamente, esperando o subterrâneo maluco voltar. quando por fim ele voltou, a baga já estava quase no fim. se aproximou e sentou, bebendo sua cerveja. derramou um bocado no próprio colo sem nem sentir. olhei para a garrafa com o líquido misterioso ao meu lado e, sem pensar muito, retirei o copo de dentro e servi. entornei tudo em um gole só. (tinha gosto de chocolate misturado com algo parecido com aveia. nada muito amargo ou forte) bebi um, dois, três copos... enquanto Eurico matava a ponta. minutos depois, fumando um cigarro, ansioso, me levantei e disse:

EU: - vamo dá uma volta.
EUCLIDES: (se levantando lenta e pesadamente) - vamo.

* madrugada de sábado, meia hora depois *

atravessava a praça do coreto já não tão ansioso, já desacreditando que algo relacionado ao chá pudesse acontecer... de longe, enxerguei outro conhecido - não tão subterrâneo - vindo em minha direção. ao se aproximar, ele disse:

BODE: - e aí, cuiabá! na paz?
EU: - tranquilo. e tu? tá indo aonde?
BODE: - tô indo lá no Gordo jogar, vamo lá? eu pago o moto-táxi.
EU: - então vamos.

* madrugada de sábado, terceira hora da manhã *

"tudo não passa de uma merda passageira", pensava eu, apavorado. me achava mergulhado naquele sofá amarelo, sentindo um peso impossível de ser meu. tentava me levantar e as pernas não tinham força. ansiava por um copo d'água; mas falar já não era tão fácil. consegui, por fim, pedir um ao Gordo. quando ele me entregou o copo, senti na mesma hora que não teria forças pra segurar e derramei-o inteiro em cima de mim e do sofá. Bode foi pegar outro e dessa vez me deu na boca. depois de um tempo, falei:

EU: - quero mijar!
BODE: (rindo) vai, Cuiabá. só não sei se tu consegue levantar. quer que eu te ajude?
EU: - quero.

mesmo com ajuda, foi difícil levantar. me sentia como se de tudo que eu era, só sobrara o corpo, pesado e enfraquecido. fui andando com a ajuda de Bode e, no meio do caminho, esqueci completamente o que estava fazendo e voltei - com Bode (sem entender) ainda me ajudando - a sentar-me no sofá. os dois me olhavam com um misto de graça, desentendimento e preocupação. Gordo me fazia perguntas sobre o que eu tomara, mas, a essa altura, nem minha fala me pertencia mais. olhei para a tv desligada e comecei a assistir vários programas ao mesmo tempo que dançavam e multifacetavam-se aleatoriamente sobre a tela e, incomodado, me levantei - com o maior esforço do mundo - e fui tentar fazê-los parar. Bode me segurou e me fez voltar a sentar.

* manhã de domingo, horário desconhecido *

me revirava hiperativamente na cama sem conseguir dormir. todas aquelas imagens e vozes e luzes perambulando dentro da minha mente já me preocupavam. me levantei e acendi um cigarro; fumei-o inteiro. só depois percebi que não havia cigarro, nem fumaça. nem boca havia no meu rosto. me levantei correndo e olhei no espelho: meus olhos estavam desfocados e as íris vermelhas; mas a boca continuava lá. o fato de que os lábios haviam se tornado verde-arroxeado e que eu não tinha mais sobrancelhas era mero detalhe.

afinal, "tudo não passa de uma merda passageira". e passou.