Adônis era um rapaz descolado. Como era descolado o Adônis! Adônis era tão descolado que, aos 17, usava um corte de cabelo daqueles que, se alguém perguntasse, tu apostaria até a mãe que foi "inventado" durante uma rápida "pescada" de um barbeiro de ressaca, segunda-feira de manhã. E Adônis sentia orgulho quando alguém esboçava uma mistura de sorriso incrédulo e deboche descarado ao comentar sobre seu cabelo, que era descolado. Mas Adônis não era só um corte de cabelo...
Ele era um rapaz que, apesar de descolado, fazia tudo que se espera de um jovem de sua idade: fazia faculdade, adorava filmes cult e Star-Wars, curtia Arctic Monkeys, votava no PT, saía com os amigos, de vez em quando, pra tomar umas, e iria, se pudesse, numa balada nos fins de semana, aqui e ali. Mas Adônis não podia, pois Adônis namorava e estava apaixonado por uma linda menina, a Lídia, com quem queria, um dia, quem sabe, se casar e formar uma família...
Adônis também trabalhava. E como trabalhava o Adônis! Aprendeu desde pequeno, com seu pai, que não deveria esperar que ninguém lhe desse o que queria, que deveria, ele mesmo, correr atrás. Por uma dessas ironias do destino que nem Freud explica, Adônis se tornou barbeiro e, após batalhar por alguns anos e finalmente conseguir "nome" pra pegar um empréstimo com uma taxa de juros administrável, abriu sua própria barbearia, aos 22 anos; afinal seu pai também lhe ensinara que "o homem só é livre quando só responde a si mesmo e a Deus, mais ninguém".
Num desses dias quaisquer de baixo movimento, Adônis estava quase se decidindo em fechar a barbearia mais cedo e ir pra casa descansar – já que as finanças iam relativamente bem, quando, de repente, chega Germano. Germano era conhecido antigo de Adônis, estudaram juntos, e já era "de casa", cliente estabelecido, e, apesar de ser daqueles clientes chatos, perfeccionistas e pechincheiros, era fiel e Adônis gostava dele e de sua irreverência.
Acontece que, nos últimos dois meses, por causa de repentinos aumentos no preço da maioria dos produtos que usava e reajuste nas taxas de água e luz, Adônis tinha sido forçado a aumentar duas vezes o preço do corte de cabelo e barba – de R$20 pra R$25 e de R$25 pra R$30. E Germano, malandro por natureza, mesmo estando completamente ciente da mudança (estampada na fachada da barbearia), intencionalmente levou apenas R$20 – o mesmo preço que tinha pago no último corte – mas evitou comentar a respeito e se sentou direto na poltrona:
— O de sempre, Adônis!
— Tu diz "corta na frente e pica atrás", Germano?
— Sim, o mesmo serviço que eu sempre faço na Lídia, aquela vadia!
— Fiadaputa! Tá, senta e pára-te quieto antes que eu corte um pedaço desse teu orelhão!
— Deixasse quicando na linha, eu só empurrei pro gol... Mas.. por falar naquela delícia, como ela(,) tá?
— Quem, a Lídia? Tá bem. Ao contrário da baleia da Karla. Por falar NAQUILO, ela ainda tá viva, ou a diabetes já livrou ela de ver essa tua cara feia todo dia?
— Hmmmm, tá brabo o homi! Apelou, perdeu! a Karla tá bem também. Disse pra ti parar de mandar nude desse teu pau pequeno, porque ela não tem telescópio.
— Tá. Agora cala essa tua boca que eu vou pegar a navalha!
Após cerca de meia hora, Adônis termina o serviço com perfeição, como de costume, tira a capa de Germano e pega o espelhinho pra mostrar o resultado:
— E aí, ficou bom?
— Tchê, ficou. Até que pra um guri de apartamento tu dá pra um bom barbeiro! Quanto te devo?
— Vai te foder! São R$30 pila!
— Baaaaaah, mas 2 meses atrás era R$20 conto esse troço, assim tu me quebra!
— Pois é, sabe como é, inflação, impostos aumentando, tenho que me ajustar, se não tomo prejuízo
— Eu entendo. Governo corrupto é foda, sempre sacaneando os empresários. Mas é que eu só tenho R$20, trouxe contado.
— Tu sabe que eu não faço fiado, Germano.
— Tchê, mas é só o que eu tenho; e agora eu já cortei, o que tu quer que eu faça?
— Te vira! Tu não viu a placa gigantesca aí na frente?
— Não vi, faz uns 3 meses que não venho cortar, tu sabe.
— Mas tu trabalha a duas quadras daqui, Germano.
— Coloquei "insulfilm" nos vidros do carro.
— Tu anda de moto, Germano!
— Trabalho com o carro da firma, rapá!
— E tu colocou "insulfilm" no carro da firma?
— Sim.
— Tá, me dá essa porra desses R$20 e na próxima tu me paga a diferença.
— Tá. Toma. E eu também não tenho culpa que tu é careiro e aumenta o preço mais rápido que puteiro!
— Tu que é pão duro e caloteiro, merda! E eu não sou careiro, EU é que não tenho culpa que o preço das coisas continua subindo e os impostos aumentando.
— Tem sim! Tu é petista que eu sei. Isso que dá votar em corrupto! Eles só aumentam teus impostos pra sugar ainda mais do teu dinheiro!
— O que tu entende de política?! Tu não sabe que o dinheiro dos impostos vai pra serviços e causas sociais importantes? Educação (que tu não tem), e saúde (que a baleia da tua mulher precisa), por exemplo?
— Vai te foder! Se tu tivesse votado no Aécio, e não na anta da Dilma, nada teria subido e nós nem estaríamos tendo essa discussão!
— Vai tu! Tu acha que eu ia votar no Aécio, aquele tucano neoliberal e fascista? Não sou idiota!
— Melhor que votar em ladrão corrupto!
— Fascista!
— Corrupto!


